sábado, março 15, 2008

A menina cor-de-rosa...

“As pessoas com deficiência mental apresentam muitas vezes qualidades de acolhimento, de admiração ou de espontaneidade e rectidão. Elas são um alerta vivo para o vasto mundo dos valores essenciais do coração. Estou convencido que a menina cor-de-rosa foi escolhida para testemunhar o amor de Deus por meio da sua fraqueza, mas a sua missão de paz só poderá ser reconhecida por aqueles que estão dispostos a acolhê-la como Sua enviada. Ela haverá de nos conduzir sempre com gentileza àqueles espaços interiores que preferimos deixar intocados, de forma que cada um de nós possa viver a sua verdadeira vocação. No relacionamento com ela, descobrimos uma identidade mais profunda, mais verdadeira.

Cada um de nós é único, conhecido pelo nome e amando por Aquele que nos criou. Infelizmente, há uma mensagem muito estridente, forte e poderosa, proveniente do nosso mundo, que nos leva a crer que temos de provar, pela nossa aparência, bens e conquistas, que somos amados. Ficamos preocupados com «chegar lá» nesta vida, e tardamos a apreender a verdade libertadora das nossas origens e dos nossos fins.

Nos primeiros dias, via-a como alguém muito diferente de mim, mas a menina cor-de-rosa começava a comunicar comigo e era firme em me relembrar que queria e precisava que eu estivesse com ela sem pressa e com carinho. Por fim, cheguei a confiar-lhe os meus segredos, contando-lhe o meu estado de espírito, as minhas frustrações, os meus problemas de relacionamento, e a minha vida de oração. Fiquei cada vez mais ligado ao espaço de uma ou duas horas que passava com ela. Tornaram-se as minhas horas de mais tranquilidade, o momento de maior reflexão e intimidade do meu dia. Quando estava ansioso, irritado ou frustrado com alguma coisa que não ia como eu desejava, a menina cor-de-rosa vinha à minha mente e parecia convidar-me a permanecer calmo no meio da tempestade.

Os papéis estavam a ser trocados. A menina cor-de-rosa estava a tornar-se minha professora, levando-me pela mão, apoiando-me na confusão que sentia ao atravessar o deserto da minha vida. As minhas muitas palavras, faladas ou escritas, sempre me tentaram a pensar em perspectivas grandiosas, sem o contacto com o quotidiano e com a beleza da vida comum. A menina cor-de-rosa não permitia isso.

Acredito que a menina cor-de-rosa tinha um coração em que a Palavra de Deus habitava em silêncio profundo. Sim, comecei a amar a menina cor-de-rosa com o amor que transcende a maioria dos sentimentos, emoções e paixões que eu associava ao amor entre as pessoas. Nós éramos amigos, irmãos, ligados pelos nossos corações. Essa experiência não pode ser explicada pela lógica, mas sim pela ligação espiritual de duas pessoas totalmente diferentes que se descobriram uma à outra, como sendo completamente iguais no coração de Deus.

O meu relacionamento com a menina cor-de-rosa dava-me novos olhos para ver e novos ouvidos para ouvir. Eu estava a mudar muito mais do que tinha imaginado. E enquanto eu, tido como uma pessoa «normal», ficava a imaginar o quanto a menina cor-de-rosa se parecia comigo, ela não tinha a capacidade ou necessidade de fazer qualquer comparação. Ela apenas vivia e, através da sua vida, convidava-me a receber o seu dom único, envolto em fraqueza mas dado para a minha transformação.

Enquanto eu me preocupava com o que fazia e com aquilo que podia produzir, a menina cor-de-rosa dava-me a entender que «ser é mais importante do que fazer». Enquanto eu me preocupava com o que se falava ou se escrevia de mim, menina cor-de-rosa ia-me dizendo que «o amor de Deus é mais importante que o elogio das pessoas». Enquanto eu me preocupava com as minhas conquistas individuais, a menina cor-de-rosa lembrava-me de que «fazer coisas juntos é mais importante do que fazê-las sozinho».

A menina cor-de-rosa não podia produzir nada, não tinha qualidades ou êxitos de que pudesse orgulhar-se. Mas, por meio da sua própria vida, ela foi a testemunha mais radical que jamais encontrei da verdade das nossas vidas. Comecei a reconhecê-la não como uma menina com deficiência, completamente diferente de mim mesmo, mas como um belo ser humano com o qual partilhava muitas vulnerabilidades. Levou-me a aceitar as minhas próprias fragilidades e fracassos e a ser menos defensivo para com a família e os amigos.

Fazia as mesmas perguntas que todos nós fazemos: Se as pessoas nos conhecem como realmente somos, sem os enfeites mundanos de que nos cercamos, será que continuam a amar-nos? Ou será que nos esquecem mal deixamos de ter utilidade para elas? Esta é a questão central da identidade: Somos bons por causa do que fazemos ou temos, ou porque somos quem somos? Sou alguém porque o mundo me torna alguém ou sou alguém porque pertenço a Deus, muito antes de pertencer ao mundo? E quando arranjei a coragem para ver mais fundo, para enfrentar as minhas necessidades emocionais, a minha incapacidade de orar, a minha impaciência e agitação, as minhas muitas ansiedades e medos, a palavra «deficiência» passou a ter um sentido totalmente novo. O facto das minhas deficiências serem menos visíveis do que as menina cor-de-rosa, não as tornava menos reais.

Nesse ambiente de amor e de cuidado, sem competição, sem individualismo e sem grande pressão para me destacar, senti o que jamais tinha sentido antes. Deparei com uma pessoa muito insegura, necessitada e frágil: eu mesmo. A partir desse ponto privilegiado, vi a menina cor-de-rosa como a forte. Ela estava sempre lá em paz e interiormente segura.

Fui capaz, com muito auxílio, de ouvir uma voz interior suave e amorosa a dizer-me: «Tu és meu filho amado, em ti ponho a Minha predilecção». A verdade é que uma grande parte, se não a maior parte das nossas vidas, é paixão. Embora todos queiramos agir por conta própria, ser independentes e auto-suficientes, somos por longos períodos de tempo dependentes das decisões de outras pessoas. Não só quando somos jovens e inexperientes ou quando somos idosos e necessitados mas também quando somos fortes e auto-confiantes. Partes consideráveis do nosso sucesso, riqueza, saúde e relacionamentos são influenciadas por acontecimentos e circunstâncias sobre as quais temos pouco ou nenhum controlo. Gostamos de manter o máximo possível a ilusão da acção, mas o facto é que o que determina finalmente o curso da nossa vida é a paixão. Precisamos de pessoas amorosas e carinhosas, para nos apoiar durante os tempos da nossa paixão e para, dessa forma nos suster, no cumprimento da nossa missão. Esse, para mim, é o sentido da paixão da menina cor-de-rosa: um chamamento radical para a aceitação da verdade das nossas vidas para escolher dar o nosso amor quando somos fortes e receber o amor de outros quando somos fracos, sempre com calma e generosidade.

A menina cor-de-rosa não precisa de ser curada; ela está bem. Está feliz porque vieste ter connosco. Por favor, junta-te a nós.”

(Texto adaptado de “Adam, O Amado de Deus”, Henri J. M. Nouwen)


…Porque pude conviver com ela também. Porque me transformou. Porque a vida é muito mais do que vemos enquanto andamos a correr de olhos vendados. Porque este texto me toca profundamente. Porque lê-lo repetidas vezes é ganhar tempo!…

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá Tiago!
Não sei se este comentário irá chegar até ti, pois eu não domino muito bem esta novidade dos blogues!
Sou professora do 1º Ciclo e andava por aí na net à procura de ideias para fazer um teatro com os meus alunos sobre as crianças no mundo e outras coisas mais, quando dou com o teu blogue e com a história da Menina cor-de-rosa. Sabes que eu adoro ser professora. Hoje, está na ordem do dia falar da Educação. Infelizmente muitas vezes digo para mim mesma "Senhor, perdoa-lhes...pois eles não sabem o que fazem, ou o que dizem..." Para mim, estar com as crianças é encontrar-me diariamente com Deus. E sabes... era tão bom que todas as crianças andassem juntas na escola: as "diferentes", as "especiais", as "invisuais" as "normais"... todas juntas mesmo. Os governantes querem ensino integrado, mas não têm "_________" para o fazer. (Desculpa...)
Eu amo as crianças tal qual elas são.
Fiquei fascinada com o teu perfil de pessoa. Tão novo e já descobriste o segredo da Vida. Eu com 26 anos também já o tinha descoberto, mas eram outros tempos com outras preocupações...
Neste momento sou já uma quarentona. Tenho um marido fantástico e dois filhos maravilhosos e tenho a melhor profissão do mundo.
Duro, duro... é ver que há um grande caminho a percorrer na educação. As crianças merecem muito mais.Às vezes digo também "Pai... estou cansada..."
Só que eu tenho muita FÉ.
Mas não vou divagar mais.
Adorei conhecer-te via blog, porque senti uma paz de alma quando estava a ler tudo no teu blog e que a vida torna-se ainda mais maravilhosa contigo a viver nela.Obrigada.

Desculpa a minha simplicidade de discurso, mas eu a esta hora já estou a "meio gás"...

Um grande beijo para ti Tiago
e continuação de uma boa vida...

Sofia

11:22 da tarde  
Blogger Tiago Krug said...

Olá Sofia!
Obrigado eu...
Obrigado pelas palavras, pelo carinho e por esta identificação que nos une.
Une-nos a nós e a tantos outros que olham o mundo nos mesmos moldes de amor e carinho.
Era tão bom que tantos mais procurassem encontra-Lo nos seus dias entre as coisas que fazem. Que tantos mais O procurassem ver em quem nos chega todos os dias. Porque acredito que ele nos fala de tantas formas atravez dos outros também.
Teremos apenas de estar atentos.
Percebo-te muito bem quando dizes que O encontras nas tuas crianças.
Eu dou Catequese a crianças do 4º ano e animo um Grupo de Jovens já de rapazes e raparigas feitos, e são todos eles também em mim um grande sorriso profundo que me faz a cada dia sentir mais próximo daquela que é a Sua proposta. Tornamo-nos mais nós e incrivelmente mais fonte de ânimo e força de vontade. Aprendemos todos os dias e apercebemos-nos que importantes são eles e não nós.
A vida, para mim, tem esse sentido. Enquanto me pautar como intrumento d'Ele, o pouco que tenho em mim e que posso dar transformar-se-á sempre num tesouro precioso que pode tocar cada um que estiver atento.
Foi Ele que nos pediu que o fizessemos.
E será d'Ele o nosso sorriso sempre que nos olharmos com o olhar que nos ensinou a trocar.
Eu já vi o olhar d'Ele! Vejo-o tantas vezes! =)
Obrigado pela estrela que há em ti.
Tenho agora ainda mais Fé e esperança do que há um minuto atrás! =)

Beijo!

Tiago

1:38 da tarde  

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